Aos dezesseis anos eu ainda não havia assimilado a idéia de que agosto é o mês do desgosto. O mês da fatalidade, dos acontecimentos fatídicos, das tragédias inesperadas e do medo. Em nenhum outro período do ano teme-se tanto o imprevisível. Diferentemente de janeiro e julho, em que há férias escolares; de junho com as festas dos Santos Antônio, João e Pedro; de dezembro, quando se comemora o Natal; de fevereiro a abril, com as comemorações do carnaval e as orações da Semana Santa.
Lembro-me do final de agosto de 1954, mais precisamente do dia 24, em que o céu estava limpo, não havia sinal de chuva e a estrada que cortava Abreu e Lima, hoje Avenida Duque de Caxias, mantinha-se silenciosa e calma, já que naquele tempo poucos veículos trafegavam pela vila.
Como era do meu hábito, encontrava-me na casa da professora Isaura Inácia de França, bem pertinho da Igreja de São José. Lá morava a fonte do saber, pois a velha mestra, que a tantas gerações ensinou, era também a diretora do Grupo Escolar Mário Domingues, situado na mesma rua. Na casa do meu pai não havia rádio. Poucos podiam possuí-lo. Ao que me lembre, somente D. Isaura tinha um aparelho radiofônico. E era lá que eu me distraía, conversando com a sua filha Didi, recitando poesias, ouvindo músicas e colhendo notícias. Época feliz, em que não havia violência e o dia era preenchido com o comparecimento às aulas, o cumprimento dos deveres escolares e o papo ameno com os colegas. Juntos fundamos o Centro Estudantil Joaquim Nabuco. Tratava-se, como era comum naquele tempo, de uma sociedade lítero-recreativa, onde se discutia literatura e praticava esportes, com ênfase para o voleibol. De alguns companheiros não sei sequer o destino. Deles resta apenas uma saudade imensa. Assim é que recordo de Álvaro, filho do proprietário rural Antônio do Ouro; Jaziel, filho do vereador Manoel Vicente Borba; Bartolomeu, filho de Celso Cunha; Aderbal, filho da encarregada do Posto de Saúde municipal; Valter Riachão, filho do único banqueiro do jogo de bicho; Figueiroa, apelidado de “Amigo da Onça” pela sua semelhança com o famoso personagem criado pelo cartunista Péricles para a revista “O Cruzeiro”; Antônio e João Gadelha, de tradicional família maricotense, irmãos de Jerônimo, que, com a emancipação da vila, foi eleito prefeito de Abreu e Lima. Dos demais, cujos nomes não consigo lembrar, mantenho a imagem gravada na memória.
Retomo o fio da meada e me vejo novamente na casa de Dona Isaura, a ouvir o rádio e conversar despreocupadamente. Em dado momento a minha atenção é despertada pela música que denunciava uma edição extraordinária do “Repórter Esso”, o mais importante programa de notícias da “Rádio Clube de Pernambuco”. Fora do seu horário normal o programa só divulgava um noticiário especial e urgente. E foi isso o que ocorreu. Em poucos instantes fiquei sabendo do suicídio de Getúlio Vargas. A leitura repetida da sua carta-testamento enchia o peito de emoção. A perda era irreparável. Os trabalhadores haviam perdido o seu líder. A república estava órfã do seu presidente. “Deixo a vida para entrar na história”, dizia um trecho das palavras de despedida. Chorei, então, convulsamente, embora não soubesse ainda avaliar o tamanho da perda. Mas a vila toda chorou comigo e pôs-se de luto. Na parede frontal de cada casa foi colocado um pedaço de pano negro para simbolizar a tristeza da população. Esse fato inspirou o cirandeiro, salvo engano o nosso grande Baracho, que cantou:
“Oh Rosa, oh Rosa,
Moça cheirosa tem o cheiro de bonina,
Oh Rosa, oh Rosa,
Moça cheirosa tem o cheiro de bonina.
Abreu e Lima, que se chama Maricota,
Ai, ai, meu Deus, o que foi que aconteceu;
Abreu e Lima, que se chama Maricota,
Bandeira preta na porta, foi Getúlio que morreu.”
*Desembargador aposentado. Ex-presidente do Tribunal de Justiça de Pernambuco e duas vezes do Tribunal Regional Eleitoral. Exerceu em Paulista os cargos de oficial de gabinete, secretário municipal, diretor do Colégio Municipal José Firmino da Veiga e Juiz de Direito.
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